domingo, 18 de dezembro de 2016

PERFUME

Quando eu era criança, tinha um pesadelo que se repetia por várias e várias noites. Eu estava escondida embaixo de uma mesa branca dentro de uma sala também da mesma cor. Algumas pessoas estavam sentadas em volta, inclusive meu pai e minha mãe. Havia um padre na ponta da mesa e uma senhora de idade ao lado dele, de cabelos grisalhos, roupas sujas e rasgadas, com muitas rugas por todo o rosto, suas unhas eram pontudas, afiadas e mal cuidadas, como uma velha onça faminta, mas cansada demais para caçar. Ela empunhava uma faca de cozinha e se mostrava um tanto quanto atordoada, os olhos quase saltavam das órbitas num revirar perturbador, com as pupilas injetadas com alguma fixação doentia. Eu estava lá, com medo de sair debaixo daquela mesa, com medo de que velha esquisita pudesse vir ao meu encontro, tentar algo que me machucasse ou aos que estavam presentes. Mas criei coragem e, num roupante, antes que mudasse de opinião, sai correndo. Foi então que percebi onde estávamos: era uma igreja, a igreja que costumava passar boa parte do meu tempo já que minha mãe me levava aos encontros para rezarmos terços e cantar glória à Deus. Aquela igreja estava mais presente em minha vida do que minha própria casa. Assim que consegui me localizar, vi que meus pais haviam saído correndo junto comigo pelas escadas. Aquela velha começou a nos seguir, correndo - a seu tempo, de maneira trôpega e desconjuntada - atrás de nós. O único caminho a se tomar era o de um labirinto, todo enfeitado com rosas pintadas de vermelho sangue, assim como em "Alice no país das Maravilhas". Pois me vi tendo de entrar naquele labirinto. Não poderia voltar atrás, era uma criança desesperada que não sabia agir sob a pressão do medo. Alías, você não precisa ser uma criança para agir assim. Estava tentando encontrar a saída quando decidi olhar para trás em busca dos meus pais, mas é claro, sendo um autêntico pesadelo, eu havia de perde-los no caminho. As flores e os arbustos foram ficando cinzas, como se alguém tivesse provocado uma queimada, tudo ao redo se despedaçando e esfarelando, e o cheiro de rosas mortas e tinta fresca foi invadindo meus pulmões. Tudo atrás de mim ia minguando até que não sobrasse uma só forma visível. Tropecei em algo e caí. Olhei rapidamente para cima, mas a escuridão era a única coisa que havia. Um céu sem estrelas e sem a lua iluminada, deu pra imaginar como seria perder a visão. Horrível.
Mas a sensação não durava muito e me via dentro de um estacionamento. Era daqueles de prédios que se vê na televisão onde sempre acontece algo de muito suspeito e o telespectador acaba  levando um susto. Tudo ali em tons de cinza e com luz parca. Só me faltava um carro a toda velocidade me atropelar ou algo do tipo. Mas não, não era o que acontecia. Na verdade, ao final deste estacionamento havia uma escada e uma grande porta de metal, que fazia um barulho de porta de filme de terror ao se abrir. Lá em cima, vinha uma mulher jovem sentada em uma cadeira de rodas. Franja rente às sobrancelhas, grandes olhos castanhos, um nariz comum e sutil, boca delineada em batom rosa, pele clara, com uma roupa toda em tons de rosa, o que dava um tom de barbie anos 60 naquele cenário monocromático. Ela gritava para que alguém a ajudasse a descer as escadas e este alguém não era eu, tenho certeza. Não apenas por eu ser uma criança, mas por ela estar olhando além da minha altura. Um homem, de terno e gravata (aparentemente estavam prontos para um encontro muito importante) foi se aproximando ao chamado da moça. Mas antes que ele pudesse ajuda-la - e como se o pesadelo não pudesse piorar um pouco mais - os membros do corpo dela começavam a cair. Primeiro a mandíbula se desprendia, depois os pulsos, os pés, braços e pernas. Um a um iam caindo como peças de um conjunto de blocos de montar extremamente de mau gosto, inapropriado para menores ou qualquer fosse sua idade. Aquela cena grotesca não era legal para ninguém, muito menos para mim, que sonhava com aquilo dia sim, dia não.
Antes que pudesse saber o desfecho da mulher desmembrada (se é que podia haver um diferente da morte) eu acordava, e o cheiro daquelas rosas, da primeira parte do pesadelo, permanecia. Até hoje sei identificar o aroma exato, já senti em algumas pessoas e isso me fazia ter cisma com elas e medo. Haviam duas mulheres que tinham este mesmo perfume que frequentavam a igreja - uma outra igreja, numa outra cidade - e sempre tentava permanecer o mais afastada delas possível. Sim, era paranoia minha, mas e daí? Não tinha esse direito depois de tudo?!Outra vez, o senti em um shampoo, na casa da minha avó, quando fui tomar banho. Passei o produto no cabelo e logo o cheiro incendiou o banheiro. Eu juro de pés juntos que comecei a passar mal por sentir aquilo. Lavei a cabeça três vezes com outro shampoo. Todo esse pesadelo nunca mais saiu da minha cabeça e toda vez que penso nesta história, tenho uma sensação estranha, como se estivesse revivendo o passado, cada momento em que temi o pesadelo, cada noite que o vivenciei em minha mente. E até hoje tenho medo de que ele volte a me assombrar.

DESABITADA

Eu vivia sempre fechada, portas e janelas trancadas por dentro, chaves guardadas dentro da gaveta de um armarinho lá nos fundos, feito de madeira pura. Lá também ficavam alguns pertences, alguns objetos de valor sentimental ensacados, embalados e.. alguns eu havia perdido. 
Quando ao cair do Sol, apareceu alguém parado no meio da rodovia, me encarando, observando cada detalhe de mim. E ele foi se aproximando lentamente, pé ante pé, com cara de curiosidade, daquelas que a gente não suporta sentir até matar. Parou na minha frente e sorriu. Passou os degraus e pousou seus dedos na maçaneta empoeirada. Eu estremeci e ele assustou, afastando por dois passos. Mas não era do tipo que desiste fácil e voltou a tocar a maçaneta, tentou gira-la mas nada aconteceu. Ele desceu os degraus e foi checar as janelas, tentou abri-las mas novamente foi em vão. Então se sentou baixo a uma árvore perto de mim e retirou um pequeno lanche de dentro da mochila, depois de comer puxou um caderninho e um lápis e começou a rabiscar alguma coisa. Ficou alí por uma meia hora no mínimo, depois sorriu para mim e mostrou o desenho. Ele tinha os mesmo detalhes, a mesma perspectiva. Todas as marcas na madeira, a tinta descascada, as tábuas pregadas nas minha janelas.
Meu interior se preencheu de uma alegria quente e estasiante. Era como se eu estivesse sendo habitada novamente só por ter visto aquele pequeno desenho, aquele sorriso de menino despreocupado. Resgatei minha chave e me destranquei. Abri a porta e ela rangeu, chamando a atenção do rapaz que admirava a própria obra prima. Ele se levantou rapidamente e foi se aproximando novamente, colocou seu pé direito sobre meu assoalho e foi adentrando com os olhos atentos. Assim que senti sua presença viva em mim, Bati a porta num ímpeto de felicidade, mas isso fez com o que o rapaz se assustasse. Ele tentou puxar a maçaneta para sair mas eu não queria que ele fosse embora e me deixasse ali. Ele puxava e repuxava, começou a chutar e eu sentia dor, tanta dor que comecei a chorar, e o segundo piso foi se esvaindo em poeira sobre o primeiro. Alguns detritos cairam em cima do meu visitante. Ele começou a sangrar pelo ferimento na cabeça e ficou ainda mais apavorado. Tentei faze-lo se acalmar e então lhe empurrei uma poltrona, e não entendi quando ele se levantou assustado e começou a me chutar novamente.
Por fim, ele conseguiu arrombar minha porta e saiu correndo, olhando raivoso para trás. Pegou a bicicleta jogada na encosta da estrada e foi embora. Foi algo tão traumatizante que nunca mais me abri para ninguém. Ainda posso ouvir sua voz me dizendo "Casa idiota, casa idiota, casa idiota..."

AQUI

Eu não sei desenhar. Não daquele jeito bonito que todo mundo chama de arte. Nem mesmo um rostinho bonito com lápis 6b. Meus desenhos de árvore, casinha de telhado triangular, cachoeira, sol, passarinhos, parece que foi uma criança de 8 anos que desenhou, mas fui eu.

Não sei como dar parabéns. As pessoas sempre desejam "tudo de bom, muita felicidade, paz, amor, dinheiro" e colocam uma risadinha no final. Eu não gosto de ser igual e repetir tudo que a tia ou a colega de trabalho falou, então eu dou um abraço bem apertado, um beijo no rosto, falo um parabéns baixinho olhando nos olhos, tentando demonstrar o quão especial a pessoa é para mim.

Não sei andar de bicicleta. Quando pequena eu tinha uma da barbie, com rodinhas traseiras, mas ninguém nunca as tirou e eu também nunca pedi. Agora, que sou grande perdi a vontade, a coragem, e ganhei vergonha de ter coragem e vontade de aprender. Nadar também não consigo. Já tentei algumas vezes mergulhar meu corpo embaixo d'água, segurar a borda da piscina e ir impulsionando minhas pernas pra cima até boiar próxima a superfície, mas na hora de soltar as mãos da borda, eu me apavoro, sinto um fio gélido subir pelo estômago e desisto na hora. (Tenho problemas com perdas, talvez seja isso. Talvez eu não queira perder o medo.)

Já tentei patinar, mas com aqueles patins de duas rodinhas pra mim não dá. Me segurava pelas paredes e minhas primas gritavam "Segura minha mão! Você não vai cair, não". Mas eu acabava sentando no pé da porta e desistia. Assoviar foi sempre um dilema. Acho que tem gente que nasce sem saber mesmo, por mais que tente. Vai saber se não existe uma doença pra isso, uma "assobioginite".

Me incomoda muito, mas eu também não consigo ficar calada quando estou profundamente afetada pelo afeto de alguém. Sou a típica apaixonada linguaruda, que manda frase bonitinha na calada da noite, que usa do exacerbo para explicar o imenso e gigantesco, exageradíssimo frio na barriga que me sobe ao ver a pessoa, e a pulsação descontrolada, a mão gélida e aquele calor interno que dá devido as batidas aceleradas do coração como se fosse um batuque de escola de samba que não para até o sol raiar.



Mas eu sei escrever. Ah, isso eu sei fazer muito bem. Porque pra escrever não se precisa de nenhuma técnica ou truque. Se quiser desregrar as regras de português é até permitido pra soar como poesia na mente de quem lê. Minto. Existe uma única regra para se escrever: Tem que vir das profundezas da alma, tem que ter sentimento, seja ele qual for. Normalmente, quando se escreve, se pensa em algo ou alguém. Penso no que já me aconteceu, no que poderia acontecer, no que provavelmente acontecerá. Penso nas desesperanças da vida, nas indas e vindas, nos tombos levados, nos livros que já li, nas músicas que me marcaram, nos filmes que já assisti. Penso no que me faz feliz e no que me faz triste, às vezes ao mesmo tempo. Penso no que vou fazer amanhã ao longo do dia e o que gostaria de mudar na rotina. Estar lá, estar acolá, mudar de ares, de praças, de fuso horário. O bom de pensar e se inspirar para escrever é isso, não se gasta nada além do tempo e um pouquinho de criatividade. E estar aqui, escrevendo, me faz ter vontade de mudar o enredo.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Estará com ela. Eu também estarei.

Já perdi primos, tios, avós, mas não foram dores complicadas de se curar. São daquelas que machuca por ver outros parentes seus sofrerem. E a dor dela eu não sei medir. Um dia todos nós vamos sentir, um dia eu vou saber como é, mesmo querendo manter distância disso por um bom tempo. Eu nunca fui boa com perdas, mas também quem é? Ninguém espera perder alguém próximo que ama. Porque quando a gente ama, quer fazer daquela pessoa imortal, como deuses da antiga Grécia. Cada um lida com a perda de uma forma diferente, e todos aprendem isso na marra. Seja cedo demais ou tarde demais.
A pior dor que até hoje já experimentei não foi de ter perdido um ente querido, foi de ver quem eu amo passando por isso. Aquela pessoa que me descobriu e me acolheu nos braços pra caminhar junto e dividir os dias. Quem disse sim ao meu pedido e segura minha mão enquando passeia. Ela estava alí, com a tristeza nos olhos, uma inundação de por ques jorrando pelo rosto, e uma família recentemente quebrada. O que eu posso fazer? Posso chorar quietinha na minha casa e pedir à Deus para que dê força a eles. Posso pedir colo aos amigos e palavras de conforto. Mas o principal, eu devo ser forte e presente. Assim, meus ombros podem ajuda-la a carregar esse fardo, até que ele se torne mais maleável e nós possamos modela-lo até que as lembranças já não a façam chorar, e sim, sorrir. Até que a ausência concreta seja presença abstrata. Até que a voz gritando lá dentro seja um sussurro manso, até que dormir seja mais fácil. Até sempre, estarei com ela.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Era


Eu tocava cada tecla daquele piano e podia sentir tudo em minha volta desaparecer e o rosto dela se fixar bem à minha frente. As pontas dos meus dedos iam varrendo a poeira do tempo e elas se escondiam pelos vãos. Já ela não se escondia, era melodia solta, cabelos longos e claros, era clava de sol.
Soava como lullaby, e nas noites mais escuras era melodia, minha 9ª e particular sinfonia.
Fechei o piano e reguei a rosa vermelha posta em sua parte superior. Vermelha como seu vestido, seu timbre, seu tom. Vermelho também era seu batom. E eu era seu amor, tanto quanto seu admirador. Posso ainda ouvir seu coração batendo no mesmo ritmo da canção, aquela do primeiro beijo, do inverno ao verão.
E bate
E me abate
Mas me deixa firme, com os pés no chão.

sábado, 17 de maio de 2014

Feel

Não dá medo pensar no futuro? Pensar que, por sorte, haverá futuro. Fazer planos que você almeja por em prática, listar os prazeres que quer ter, as paisagens que quer fotografar, o beijo que quer carregar no dia a dia. Não dá um medo danado sonhar? É como abrir os braços e saltar de um prédio na esperança de criar asas no meio do caminho. Quantos livros quer ler, e as histórias que pretende contar, os discos que ainda não ouviu e o almoço que ainda não provou. As aulas de piano que espera começar, e as de violino que vão chegar. Cartas, sim. Cartas que precisa escrever para cada pessoa importante nessa vida. Ah, as pessoas, e aquelas que ainda não conheceu? Tantos amigos pra encontrar, vidas inteiras dentro de uma só. Mas quanto tempo dura uma vida? Talvez um dia ou dois, talvez 80 anos, talvez ela se mostre tão maravilhosamente bela que nem mesmo a morte a jogará no esquecimento, independe do tempo. E ninguém quer ser esquecido de fato. Deixar o nome na história, uma árvore marcada, uma carteira de escola rabiscada, um cimento molhado que cravou a sola do sapato, uma declaração de amor no muro da esquina. Qualquer coisa que se vista com outros olhos, passa a ser chamada "Arte." E se as preocupações parassem em nós mesmos, se a vontade de permanecer respirando fosse egoísta, mas tem sempre alguém, vários "alguéns" que sem eles já não faz mais tanto sentido "Artear" por aí. Tem sempre um desespero por felicidade, por riso, uma busca incessável por sentir. Você consegue sentir? O sol, o vento, o marasmo, a raiva, a angústia, a dor, a paz, a água, a fome, o desejo, o carinho, o amor. Mas sinta-os com cada veia que costura seu corpo, mostre a você mesmo o sentimento mais inexplicável, confuso e estonteante de todos. O inspire, se inspire, fundo, bem fundo, mais fundo, expire, solte, se solte. Solte! E por fim você o reconhece e o chama de: 
Estar vivo.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

12

Cai de gota em gota em minha boca que é pra não escorrer no rosto, que é pra não perder o gosto, que é pra eu tomar bem lento essa sua dose de doze em doze horas. Sopra o vento me dizendo que o gosto mais amargo sempre será o des esperar.